19 de novembro de 2005

TARÔ E CINEMA ( I )

O Rumor dos Arcanos em “The Village”, de Shyamalan

Todas as terras, nas minhas Visões / Junto co’a minha se encontrarão /
Por nós todos feita, Jerusalém, / Coração no coração e mão na mão.


Jerusalém, A Emanação do Gigante Albion - 1804
William Blake




Prescrições para a manutenção do espaço utópico

1ª Não deixe a cor ruim ser vista: - ela os atrai;
2º Não entre na floresta. É lá que eles vivem;
3º Toque o sino de alerta se eles vierem;
Não leia este artigo se não tiver visto o filme
!


Grande sacada de Mr. Shyamalan (ou da equipe de marketing) : bolar chamadas para induzir o público a não revelar o desfecho do filme que, se desvendado, “perde a graça”. Ou seja, é criada no espectador uma apreensão similar às prescrições que protegem o Vilarejo, impedindo-o, ou querendo impedi-lo, de contar o final. São três leis para os habitantes da Vila e uma lei para o espectador. Não se revela o fim do filme da mesma forma que o segredo do bosque precisa ser mantido - dupla articulação, uma similitude de significados que se associa ao marketing cinematográfico. Perfeito. Perfeito porque funciona.


O Muro

O filme “A Vila” metaforiza fobias do homem moderno. Até aí, nada de novo. Aliás, a surpresa que o diretor nos reserva é de uma obviedade que amedronta - nada está seguro. A inocência agoniza em um caldeirão perpétuo. Ou nos trancamos a sete chaves ou os monstros nos comem. Realidade? Exagero?

Alguns lêem o filme como uma apologia ao puritanismo - uma apreensão ingênua. Outros, como uma crítica ao governo Bush ou um pastiche de “Matrix”. Todas as leituras são válidas, o texto é polissêmico.

Uma das facetas que me salta aos olhos em “The Village” é a criação de uma cidade utópica no passado, já que as cidades “perfeitas” do cinema preferem habitar o futuro (ou um não-tempo). E também a possibilidade de discutir o Amor e a Confiança – questão importantíssima e libertadora e que, em minha opinião, torna o filme instigante.

Quanto ao primeiro item, não é de se estranhar que um filme que trate das utopias na contemporaneidade desloque o lugar ideal, a eutopia, para um passado que corresponde a uma idéia romântica. O futuro visto do presente traz a idéia de um espaço distópico, degradado. Se a questão é a segurança, o passado prometeria maiores certezas ou a ilusão de alguma garantia, mesmo que signifique retrocesso – abrir mão do que é conhecido, principalmente em termos tecnológicos.

O preço da segurança em “The Village” é a perda da liberdade. E é natural da condição humana não aceitar grades, prisões. A não ser que o cativeiro seja a própria ignorância: longe dos olhos, longe do coração - não é o que diz o fabulário sentimental? A ignorância nos destina ao não-exercício da vontade. Optar nem sempre é prazeroso, mas é muito irritante quando esse direito nos é tomado. Nem que a nossa atitude seja como a do pássaro que sempre viveu em cativeiro – ao abrir-se da portinhola, volta-se correndo para o espaço que parece seguro.

Imaginemos então dois círculos: o que separa o vilarejo do bosque e o que separa o bosque da civilização. São dois os muros. O primeiro é um “cercado” que protege a inocência, assim como é dramatizado no arcano XIX, O Sol. Até a cor amarela das capas, tintas e bandeirolas que sinalizam os limites no filme e que reproduzem a cor do Sol contribuem para facilitar a analogia.



Interessante que a idéia de uma proteção circular esteja presente, por exemplo, na organização físico-espacial de diversas tribos indígenas, criando uma fronteira que separa o mundo da cultura do mundo da natureza. É claro que o nativo se sente muito mais à vontade no seu habitat do que nós, os ditos civilizados. Mas ainda assim a natureza o apavora. E o círculo formado pelas tabas o abriga, separando o que é conhecido daquilo que causa medo - tudo aquilo de que não se tem consciência ou que não se quer ver. O Sol em uma tiragem de tarô também pode significar proteção. Um espaço de fruição da inocência.



O segundo círculo/elipse que estaria separando o bosque da civilização é a guirlanda, o têmeno protetor do mundo. No arcano XXI, O Mundo, do Tarô Visconti-Sforza, dois anjos (os gêmeos do Sol) erguem a Jerusalém Celeste envolvida por uma bolha. A Nova Jerusalém do poema de William Blake, mítica cidade mental da liberdade e da paz e que, juntamente com outras materializações literárias sobre cidades utópicas, poderia ter inspirado o Vilarejo de Shyamalam. Os anjos são os guardiões da inocência.


O Amor e a Escolha

A possibilidade de escolha está no eixo do Tarô: o Arcano dos Enamorados, também intitulado de Os Amantes. Pontual que uma imagem relacionada ao Amor trabalhe juntamente com a questão do livre-arbítrio - principalmente no arcano VI do Tarô de Marselha ou conjuntos de lâminas inspirados nele, já que nos decks ingleses a eleição não transparece imageticamente, como se nota nas figuras abaixo:



Tarô de Marselha


Tarô Waite

No palco das relações amorosas sempre está em cheque a opção, o receio de uma seleção equivocada, a medida da confiança e uma prova moral. O êxito ou o fracasso nessa prova é que irá determinar o desenrolar dos acontecimentos.

No filme, observamos um triângulo amoroso: Lucius, Ivy e Noah, relação dinâmica e que irá impulsionar toda a seqüência dos fatos e desenlaces sob a égide do Arcano VI, O Enamorado. Vamos agora conhecer as relações entre os protagonistas e as idéias-força:

Oswald Wirth, um dos mais importantes estudiosos do Tarô, marca o princípio da inteligência individual nas seguintes imagens: O Mago, A Força, O Enforcado e O Louco. Essas lâminas compõem a primeira das tétradas comparativas do Tarô em uma quadrangulação de forças que se esclarece por aproximação e analogia, a saber: O Mago tem a potência e a aptidão para instruir-se em todas as coisas, enquanto A Força, em um estágio plenamente instruído, dedica-se a obras práticas. No Enforcado o rendimento é improdutivo, mesmo que os talentos sejam reconhecidos. Seu pensamento demasiado sublime para fazer-se inteligível. Já O Louco, dono de um intelecto incapaz, não tem meios para compreender o que o rodeia.

Parece claro: Lucius Hunt é O Mago; Ivy Walker, A Força; Noah Percy, O Louco. E todos passam, em momentos diferentes, pela condição do Enforcado.





Lucius é aquele que traz em suas mãos o poder da mudança. Deseja ir buscar remédios para que ninguém mais padeça (como a criança falecida pela qual um pai chora no início do filme). Lucius Hunt é aquele que primeiro desafia o perigo e o único que se habilita a usar de seu potencial em prol da comunidade. É importante lembrar que O Mago faz tudo através de suas mãos e é através delas que Lucius indica o caminho para Ivy. Quando ele a toca, alguma magia se faz e tudo passa a se desencadear de forma vertiginosa. Lucius Hunt, como objetiva seu nome, é a Luz da Caça (o caçador da luz?) Lucius é a luz que ilumina o caminho de Ivy. O Mago existe em potência, não necessariamente em ação. E assim que Lucius fica imobilizado se torna O Enforcado. Quem é age é Ivy, A Força, impulsionada pela confiança, pelo amor e também pelo desespero.

Ivy significa “a videira”, aquela que dá a vida. A semelhança com “Eva” é nítida, ou seja, mulher primeva que inicia algo novo. Ivy é a cega que enxerga. A que confia cegamente. Ivy Walker (Walker é aquele que caminha), dona de uma sensorialidade apurada, coloca em ação o desejo de Lucius. É a potência do Mago que se estende e se realiza na Força. Ivy não vê as cores que separam o Vilarejo do Bosque. Sua compreensão da vida é outra – difusa e, no entanto, pontual. Ivy, no bosque, é a imagem do Eremita. Traz na sua capa a cor do sol e a luz da lamparina. Sozinha. Muitas vezes, o Amor exige esta jornada solitária, em busca da redenção. Restam-nos as experiências guardadas na sacola do Louco.


E Noah Percy é a encarnação do Louco. Percy, de “Percival”, aquele que perfura o vale - em outra possibilidade interpretativa, o que perfura o véu. Quem vê através do véu é Iyy, a cega. Noah, a inocência de mãos dadas com a alienação. Noah irá tornar-se o Enforcado porque é através dele que a salvação chega à vilarejo por vias inesperadas. É através dele também que o segredo será mantido. A sua morte garante a segurança de todos. Ele é o bode expiatório do grupo.

É através da morte de Noah que Lucius poderá sobreviver.

E para que alguém percorra o caminho com sucesso é necessária a união, a força das duas famílias – os que caminham (Walker) e os que caçam (Hunt), o que já se insinua na relação platônica de Alice e Edward, a mãe de Lucius e o pai de Ivy, respectivamente.

O Conselho, formado pelas figuras parentais (primeiras 5 imagens do tarô), são os anciões da Vila. Alice e Edward cumprem o papel da Imperatriz e do Imperador, arquétipos materno e paterno. A Justiça é representada pelo Conselho, fórum onde se discute todas as ações da comunidade. O Julgamento, além de estar presente nos veredictos, se faz sentir em todas as situações de irrupção – o alarme, os barulhos estranhos que vêm do bosque, as marcas feitas nas portas. É bom lembrar que o arcano do Julgamento é o único que apresenta um instrumento musical. E que chama a atenção de forma direta, incontestável - o som sempre nos pega de surpresa.

O Hierofante também é Edward, no papel de professor. A cena que o retrata na escola nos remete imageticamente ao arcano V. Na carta de tarô, temos os discípulos com os rostos voltados para o Pontífice. Na cena do filme, Edward é retratado de costas, com os alunos olhando para ele. Uma postura que insinua um segredo? Que existe algo por trás da história daqueles de quem não pode se dizer o nome?

Os arcanos se misturam, se interpenetram - Ivy tem elementos da Estrela (a sensorialidade diferenciada, percepção sintonizada, apurada, e também a inocência da Mulher-Estrela), da Força (aquela que doma o medo) e do Eremita (aquele que caminha protegido por um manto e que carrega uma lanterna iluminando seu caminho).

A cena em que Ivy coloca a mão para fora de casa e um daqueles de quem não se fala o nome se aproxima, momento exato em Lucius vem e toma sua mão, é a prefiguração, o prenúncio de Ivy enfrentando o medo na floresta. Lucius lhe dá confiança necessária para enfrentar a Morte.


A cor vermelha, proibida, é O Diabo. O sangue, o desregramento, a paixão, o sexo, a violência. Tudo que deve ser evitado para que não se perca a inocência e para que a Vila continue protegida. A fruta que não deve ser colhida - a maçã proibida de Ivy-Eva? Seria a cor vermelha a que Ivy pressente na aura de Lucius? Lucius-Lucifer, o anjo luminoso? Um paraíso perdido? Quando Noah Percy cai num buraco da floresta, é nítida a imagem do anjo caído. Vale rever a cena.


Dizem que existe um número determinado de temas no mundo e que todas as histórias derivariam destes arquétipos/protótipos. Eu lembraria da Flor Azul dos românticos alemães, o símbolo do impossível. E do conto da Rosa Azul, em que o príncipe, para salvar a princesa de uma mal terrível que a levaria à morte certa, precisa atravessar montanhas, florestas, perigos e trazer-lhe o remédio exato. A única flor azul que nasce no topo de uma única montanha. Em mundo em que o amor não raro é confundido com tesão e sexo, em que a confiança foi substituída pelo “ninguém é de ninguém” e pela omissão, é no mínimo constrangedor – para alguns – e emocionante – para outros – que o tema do amor romântico ainda faça tanto sucesso.

"The Village" rememora que o Amor e a Confiança movem montanhas, iluminam o caminho de cegos, promovem a Magia do Impossível. Mas sem esquecer que as frutas vermelhas sempre estão no meio do caminho.


Zoe de Camaris

Ofereço este artigo para João Acuio, Alexey Dodsworth e Janaina Leite. Grata pela interlocução: João no cinema e a caminho de casa, Alexey na Astréia e Jana no Messenger. Demorei mas publiquei. Incrível como fico me enrolando.

30 de outubro de 2005

CARTAS DE CIGARRO


Kali by Lynn Dewart

O Diabo mora nos detalhes, o inferno da analogia. Semelhanças icônicas e, porque não, irônicas – o nosso tempo, a Era de Kali. A deusa hindu da Destruição e do Renascimento nos mostra sua língua áspera. Eu fumo, você fuma? Fogo e Ar, os ritos da fumaça no fim dos tempos. Trazer a fogueira para perto de si, dizia uma amiga xamã - só pode ser o tal do xamanismo urbano.

Perto do fogo, eu quero estar perto do fogo.

O ato de fumar, segundo a antropóloga Vilma Chiara, é oferecer o sacrifício simbólico do corpo queimando lentamente - agradar aos deuses da Idade do Ferro, assim como Abraão agradou ao Senhor dos Desertos. Um rito de passagem. A supressão do ato de fumar indicaria que o rito foi levado a cabo. Fumantes são eternos adolescentes.



Como sabemos reproduzir gestos ! E como funciona bem a propaganda ... ao sucesso, com Hollywood.



O Tarot é essencialmente polissêmico. Uma história ilustrada em que podemos inserir leituras segundo nossa introvisão pessoal. Uma máquina de produzir sentidos a partir de investimentos múltiplos – culturais, sociais, afetivos. Há tempos, ouvi falar de uma agência que teria contratado tarólogos para auxiliar na resolução de uma campanha. Perspicazes, os publicitários. A comunicação imediata através do discurso com motivação metafórica e metonímica. Códigos. Só muda a matéria de expressão, o suporte. A matéria humana é sempre a mesma. E Kali continua morando nos detalhes.

....................

Sofro de um astigmatismo muito forte – quatro graus em cada vista. A lua que vejo no céu é dobrada. Meu mundo, sem óculos, não apresenta definições e limites exatos, uma imagem se funde com a outra e se desdobra. E num lance desses, há tempos, observei o verso de um maço de cigarros – a imagem de um homem sufocando, sem ar. Num primeiro momento, meus olhos não identificaram que o fundo da cena apresentava uma escada, não percebi a profundidade dos degraus. Me pareceram uma persiana.



Assim como a "persiana" que observamos ao fundo da lâmina de número 9 do naipe de Espadas no Tarot Waite. Inevitável mesmo foi traçar analogias. Ora, nos significados do 9 de espadas lemos o sofrimento, a agonia. O pesadelo que acomete a moça que tampa os olhos com suas mãos aflitas. Não há no pesadelo, no mais das vezes, a supressão repentina do processo respiratório? A Apnéia, Hipopnéia, o sufoco? São praticamente 9 os degraus na imagem do Ministério da Saúde. E na carta de Pamela Smith, o debrum do lençol ou os limites do colchão sugerem uma décima espada.















No livro O Natimorto, quadrinista Lourenço Mutarelli associa as cartas do tarot às nada agradáveis imagens dos maços de cigarro. Eu já tinha tido essa idéia - o produtor e dramaturgo Felipe Hirsh está de prova, já que uma noite lá em casa contei para ele sobre o quanto as imagens do verso das carteiras de cigarro se prestaria a um tarot degradado, ocasião em que Felipe me falou sobre o livro de Mutarelli, na época ainda não lançado.

Mutarelli relaciona o homem frente à escada ao Enforcado. E a imagem do casal na cama, que traz a advertência sobre a impotência sexual, ao arcano XVIII, A Lua, conforme se lê:

"Dois cães uivam enquanto bebem lágrimas lunares. Sob eles, um lençol de água. Na água, uma criatura, dizem, o escorpião. A Lua é cortada, e não vemos a parte superior. No maço, dois seres humanos. (...) Na parte inferior da imagem, um lençol cobre seus órgãos genitais. Na parede azul, como o céu, vemos ao centro um detalhe da moldura de um quadro que não vemos. A Lua."















O inferno das analogias. Não é o Diabo a sombra do Enamorado? Sempre precisando fazer escolhas. Inferno sem o qual um tarólogo não vive. E enquanto meu peito aguenta, acendo mais um cigarro. O Ministério da Saúde adverte ...e eu, me divirto. Enquanto posso.

Dedico mais este artigo para a taróloga Vera Tanka. Que fumou o quanto quis e não morreu disso. E trouxe, pra sempre, a fogueira perto de si.

Zoe de Camaris
out / 05

6 de outubro de 2005

Estudo para um Caos






O último anjo derramou seu cálice no ar.










Os sonhos caem na cabeça do homem,











As crianças são expelidas do ventre materno,











As estrelas se despregam do firmamento.










Uma tocha enorme pega fogo no fogo,










A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.










Os vulcões vomitam cometas em furor










E as mil pernas da Grande dançarina









Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.






Rachou-se o teto do céu em quatro partes:
Instintivamente, eu me agarro ao abismo.
Procurei meu rosto, não achei.
Depois a treva foi ajuntada à própria treva.





Poema de Murilo Mendes em As Metamorfoses (1944)
Tarot New Vision (exceto o Nove de Espadas de Waite/Smith)
Leitura de Zoe de Camaris


A PALAVRA É DE PRATA



O SILÊNCIO, DE OURO

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tudo imóvel - as horas nem respiram
num segundo a humanidade toda cala a boca
como se vendo através de vidraça fosca
o olhar de olhos que nunca viram

tudo em silêncio - o tempo parou para ouvir-se
perdida a memória, o real fica absurdo
qualquer coisa é a conclusão de tudo
o que se disse e o que não, agora diz-se


Marcos Prado (1961-1996)

1 de outubro de 2005

JOHN CHRISTOPHER Depp III

G A T O d e C O P A S




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G A T O d e P A U S




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G A T O d e E S P A D A S




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G A T O d e O U R O S




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Edward Mãos de Tesoura é uma primeira opção para Espadas, a mais óbvia, certamente. Dead Man, a mais acertada. A loucura de Mort Rainey em Janela Secreta também é de Espadas - os tormentos da mente - e Corso fica no mesmo naipe em O Nono Portal. Gato de Ouros como Wonka em A Fábrica de Chocolates, Paus em Piratas do Caribe e Copas em Chocolat.
tudo mais a declarar,

: )

Zoe

28 de setembro de 2005

CAIU A CASINHA


The Tower / Lunaea Weatherstone


Uma aluna me perguntou novamente sobre o tempo no Tarot - e eu me pergunto, pra quê? Datas são datas que são datas que são datas. Há uma evolução na leitura que permite perceber onde o tempo se acomoda, onde sai correndo.

Uma noite dessas - bad night, bad trip - tirei a famigerada "Torre Abatida pelo Raio", vulgo "A Casa de Deus" (Deus? Sei ...) Como não dou mole pro destino, tratei de ir buscar a cura no Sol. E quanto mais escrevia sobre o Arcano XIX, mais os raios me queimavam nesse maldito frio curitibano. Não importa, fiz o que precisava ser feito, saí da carta inspirada pelo imperador e pelo arquiteto cabriolando - eu poderia dizer manquitolando, mas deixa pra lá.

A Torre pede a reconstrução promovida pelo Sol. A Estrela inspira, respira, espera, no entanto (sempre os advérbios) segue-se a Lua, o momento mais solitário e triste do caminho. Só o Sol cura, só ele pode cicatrizar. Só sob seus efeitos se constrói um muro novo, com tijolos recém saídos da olaria. Tijolos que apenas protegem, não escondem. Com a Torre cai aquilo que não nos pertence e por isso nos liberta - apesar da dor. É uma construção intelectual que desaba. Uma idéia falsa. O Amor, o Sonho, a Resposta, moram em outro lugar. O trajeto então se dá: A Estrela, A Lua, O Sol.

Hoje o sol está querendo sair na gélida Curitiba.
É Primavera. Dizem.

Tempo? Alguém falou em Tempo?

Zoe

23 de setembro de 2005

O MergulhO nO OlhO do SOl


Sunny e Sunset / Charlene Arsenault


Fortuna MaJor. Fogo, ouro puro, diamante. Gato amarelo de juba régia, palácio de cristal. Olho de castanha. Copa em flor, pedra preciosa. Estrela de âmbar. Puxar o Sol para baixo, multiplicar de novo cada chama sob lentes de aumento: o sol dentro. O sol dentro. O sol dentro. Sua mão, gota de mel.

Eis o jardim:


Arcano XIX / Oswald Wirth

Sob o olho do Sol tudo se esclarece – é perfeita a nitidez dos contornos, a delicadeza brutal de cada traço. A verdade explode em raios e queima o que procura a sombra antes que possa se esconder. Não há mentira entre os gêmeos solares – podem expressar seu amor sem medo, em explosão vital. Coração no coração. A Temperança fez sua Arte. Estamos nus e não há vergonha. Há desfrute, não medo. As lágrimas caem férteis, donas do milagre da chuva. O afeto é a sua manifestação. A razão deu a mão ao sentimento. Pureza, dom, claridade. Protegidos pelo têmeno sagrado - quem levaria uma vida para desvendar o Sol? Depois da noite só há o dia. E dentro de mim, noites com sol. Na manhã, abro a janela. Ofereço o receptáculo àquele que emana a Beleza, a Força, a Virtude, a Graça. O dono da flor sem dono.

Recolho o orvalho na língua. De Ganimedes sorvo o que me destina. O Sol no palato na soleira do meu quarto. Hora de alçar vôo. Dentro do olho do falcão haverá um Dia.

Um dia depois de uma noite mais um dia.

Zoe de Camaris / Equinócio de Primavera, 2005

13 de setembro de 2005

Cupido e Psyche





O Amor está ligado à Beleza. Quando observei Cupido e Psyche de Rodin no Museu de Arte Moderna tudo se tornou uno e volátil ao mesmo tempo - ele e ela que eram um só. E belos, por serem dois. O corpo traduziu o que acometia à alma - pequenas borboletas elétricas brotando na pele. Era pedra, mas era pele. Não senti frio, mas era mármore. Era liso, mas vagueava contornos. Era água. E fundo, muito fundo. Não era azul nem era vermelho. Era lágrima mas não era triste. Não mais uma tradução da Beleza mas a face viva do Amor. Ver seu rosto. Puro. Quente. Ao meu lado.

De verdade.

Sim, é possível ver o Amor além de senti-lo. Psiquê foi punida não por observá-lo em seu sonho dourado mas por ter infringido uma lei até então desconhecida e sem a qual a Beleza não vive.

A Ética.

Há que existir Ética no Amor.

Se há Estética, há de existir Ética. Pois sem ela, Eros voa. Desprende. Escapa. E a beleza fica só. E o amor se enfeia.

Só há um caminho para o Amor. E as pedrinhas brancas que ladeiam essa estrada são feitas de delicadeza. Deve-se pisar leve. Mas são pedras e não cascas de ovos. É possível pairar sobre elas e depois soltar todo o peso que não se quebrarão. Você será sustentado para ganhar impulso. Acolherão seus pés com sandálias douradas. E será possível brincar. E olhar para as flores. E sentir calor. E conversar com o Bicho Papão. Desabar em carreira, serenar o ritmo. Deitar-se na estrada, dormir. Acordar. Percorrê-la.

Não dá pra amar de qualquer jeito.
Não basta o Amor substantivo sem o verbo que lhe dá Ânimo.
É preciso aprender a conjugar – que se enverede pelos caminhos do Érebo mas que, depois, se faça a luz.

O amor que eu vi, existe. E é Belo. E é Bom.



Hermit's Tarot


Se deito as cartas para mim - coisa rara - fico numa alegria só quando o Dois de Copas aparece, me sinto brindada. Embora diversos autores digam que o arcano funciona numa oitava menor que O Enamorado, me pare que aqui temos uma relação amorosa sem a sombra da encruzilhada que paira sobre o Arcano VI - o danado do Cupido deu um tempo, aquele garoto maroto que aparece nas guinadas do destino. Agora ele é, junto com Psychê, um dos protagonistas do Amor. A transformação de vinho em sangue, da água para o vinho, os processos de intimidade estão em questão. Não é o Ás de Copas a carta onde o Amor explode? Não são dois cálices que traz o Anjo da Temperança?

Zoe
05/10/05

30 de agosto de 2005

Fortuna Minor



~ O Acidental Perfume do Almíscar ~
Jalal ud-Din Rumi



Não atente ao acidente
(efêmero e instável )
pois sua essência
é semelhante à essência
do recipiente que contém o almíscar,
e o mundo e seus prazeres
é parecido com o perfume do almíscar.

O perfume do almíscar
não é duradouro
porque é um acidente.

Logo, se alguém busca
o almíscar no perfume
sem contentar-se só com o perfume,
faz bem.

Agora, se alguém se submete ao perfume
do almíscar faz mal, porque se rende
a algo que sua mão nunca poderá reter.

O perfume não é senão
uma qualidade do almíscar.

Enquanto o almíscar
permanece nesse mundo
podemos aspirar o seu perfume;
mas quando se evapora
e cruza o véu do invisível
os que vivem por seu perfume,
morrem.

Porque o perfume
é inerente ao almíscar.
É a parte em que o almíscar se manifesta.


* do discurso de número 12 do poeta Jalal ud-Din Rumi, com tradução de Monica Berger. A imagem é da figura geomântica Fortuna Minor.


17 de agosto de 2005

O Vinho do Invisível


A Temperança / Jacques de Gheyn


Verte, ó saqi, o vinho do invisível.
Com este signo, com este nome,
falemos do que não tem signo nem nome.
Deixa-o jorrar em abundância,
que este ato enriquece a alma;
embriaga-a, ajuda-a a alçar vôo.

Vem, derrama mais uma taça,
ensina aos saqis a arte da escanção.
Como fonte que transborda do coração de pedra,
rompe o jarro do corpo e da alma.
Faz a felicidade dos amantes do vinho
e a inquietude dos que só fruem o pão.

O pão é o artífice da prisão do corpo,
o vinho, a chuva que cai no jardim da alma.
Quanto a mim, uni os extremos
das águas que cobrem a terra;
cabe a ti alçar a tampa da ânfora do céu.

Fecha esses olhos que só vêem imperfeições
e abre aqueles que sabem contemplar o invisível,
que não se detêm diante de mesquitas, de ídolos,
pois os desconhecem por completo.

Silêncio!
É nesse silêncio que surge o tumulto
e faz calar nosso mundo inferior.


Jalal ud-Din Rumi
(poeta persa do século XII)


A Temperança / Hendrick Goltius

2 de agosto de 2005

O Desenho



a situação /6 de copas

Numa nítida manhã, quando eu era pequenininha e estudava no colégio de freiras, resolvi fazer um desenho. Colorir e pintar coisas que estava aprendendo na escola. Nunca tinha feito lição dobrada, só o que me era pedido. Por isso, foi diferente sentar frente à mesa redonda, os lápis de cor espalhados, o molhado do cabelo gelando um dos ombros. Minha mãe cozinhava, barulho de panelas misturado com o cheirinho dos primeiros temperos. Eu tinha um periquito chamado Ouro Verde e, se nesse momento ele piasse abrindo o delicado biquinho me desenharia com o lápis azul na mão, compondo a curva de um arco. Depois a ponta da flecha e a empunhadura da borduna, a linha da zarabatana.

Primeiro ano da primeira série - devo ter colorido também uma oca, um cocar sobre a folha de arquivo. Me sentia feliz - com todo capricho poderia agradar à professora. Guardei a folha dentro do caderno de exercícios e o que me alimentou na hora do almoço foi a beleza dos desenhos. Meus desenhos. Entrei no ônibus do Seu Rigoni com a odiável touca azul-marinho que minha mãe insistia em me agasalhar. Quando soube da existência de Santa Joana d’Arc me senti uma verdadeira mártir, aquela coisa me apertando. Detesto que me apertem o pescoço, possível razão para que eu me sufoque aos poucos fumando mas isso só vem ao acaso e não ao caso.

Nunca pensei mas é curioso o método Maria Montessori. Eles, inclusive, podem baixar as cortinas da sala de aula para criar um clima intimista – e assim estava quando entrei, a luz atravessando o tecido em direção à minha carteira. De dentro da mala saquei o caderno de exercícios que continha o meu tesouro. Meu arsenal de armas indígenas. As meninas todas nos seus lugares, começa a aula. Não posso interromper. Sou tímida demais para buscar nos confins da minha carteira-caverna, atravessando picos de chiclete e bolinhas de papel, a lição suplementar. O agrado acalentado. Deixe, pensei. Depois eu mostro.

A aula transcorreu como sempre, meu pensamento voando. Prova-relâmpago. Surpresa! Responda 3 perguntas sobre os índios brasileiros e desenhe suas armas. Sorri feliz e me lancei com a ponta do lápis na folha como quem toma o arco do triunfo. O arco da borduna a linha da flecha na zarabatana de grafite. Perfeito. Entrega em tempo recorde, não precisava fazer melhor o que já tinha feito antes. Bate o sinal.

É hora do Recreio.

Eu sentada aos pés da minha árvore magrinha imaginava qual seria a cor da fada que estaria nascendo naquela hora quando uma das metidinhas bestas da minha sala - a mais chata de todas - veio com as mãos cravadas na cintura me comunicar que eu estava colando e a professora me esperava na sala de aula - nessa ordem.


influência externa / O Julgamento

Fiquei tão atordoada que talvez o espírito da árvore tenha me acompanhado até o destino e a fada tenha parado de nascer, perplexa, ou ainda que tenha tomado ares de colibri porque não sei como consegui caminhar até a sala amarela, aveludada feito uma pantufa e perigosa como um pântano, meu coração pulando daquele jeito.

O que é isso? Respondi que tinha desenhado porque achava bonito e que gostaria de tê-lo entregue no começo da aula. Seu rosto traia descrédito enquanto afastava as meninas apinhadas à nossa volta.


primeira conseqüência / 5 de copas

Não sabe que isso é feio, colar? - Eu não colei, Tia. Eu não colei. Ela olhou meu desenho e em silêncio guardou-o dentro da pasta. Ia falar com a Irmã Agnes, professora regente. E me mandou embora. Se eu não sei nem como cheguei até ali, sei muito menos como saí. Porque nessa hora falta a lembrança dos pés em marcha, o destino é o que menos importa. Só existe a confusão.

Hoje, para quem lembra com os seus botões, é óbvia a conclusão de que eu não precisaria colar - nunca apresentei nenhum distúrbio que me impedisse de repetir no turno da tarde o que tinha feito minuciosamente pela manhã. E eu era tão inocente, tão quietinha, a menina que arrancava a touca azul-marinho-joana-d’arc assim que entrava no ônibus, destrançava os cabelos e abria o botão do avental quadriculado que estrangulava a cintura.

Se a bondosa Irmã Agnes tivesse sido comunicada, talvez concluísse o que era claro - e acalentado o meu peito, tomado de susto.

Minha nota não melhorou nem pirou, acredito. E o que era agrado, mimo, ficou carente de cor. Empalideceu-se. O que é a decepção. O que é a acusação. A culpa será dos desenhos?


segunda conseqüência / 9 de espadas

Não contei nada em casa, acho. Não lembro. No pátio, as meninas olhavam para mim e riam aos cochichos. No primeiro ano primário, colar não tem nenhum glamour.

Só muito mais tarde fiz mais do me pediam, quando pouco me importava o julgamento já que ninguém veria o resultado dos meus esforços mesmo. Tudo o que é demais que fique dentro. No fundo da gruta-carteira, repleta de bolinhas de papel e estalactites de chiclete. Tudo bem trancadinho.

A nítida manhã e a tarde sulfurosa entraram de mãos dadas pelas janelas aqui de casa ontem à noite lançando um grito que abalou o céu e a terra. A fada que havia ficado paralisada perto da árvore engoliu em seco, mas dessa vez olhou-me nos olhos antes de morrer. E eu vi o que não tinha visto naquele dia: uma mulher de olhos glaucos, surgida do nada, empunhou sua borduna, arrancou a égide, e com um gesto limpo me mostrou o seu, o meu coração.


futuro / A Justiça
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Zoe de Camaris, que inventou esse nome para poder mostrar um pouquinho do que vive embaixo da carteira.