20 de janeiro de 2007

MAIS UM TOQUE DE PERFUME



Acabei relendo O Perfume. O livro caiu em minhas mãos no dia seguinte à postagem anterior. Eu estava aqui angustiada com a minha conclusão. Será mesmo O Enamorado o arquétipo central do filme, como afirmei? Qual é afinal o papel do Amor no romance de Patrick Suskind? E fui buscar justificativas para minha impressão, já que vivo contra-argumentando comigo mesma. E como ninguém discordou...

Antes, alguns comentários. Sim, o filme é uma boa adaptação do livro. A crítica que diz que seria impossível passar para as telas sensações olfativas através de imagens é um disparate. Se assim fosse, a literatura também não o conseguiria. Diz Suskind: "... a rigor não havia sequer coisas no universo interior de Grenouille, mas apenas odores de coisas (por isso falar desse universo como uma paisagem é um façon de parler, certamente um modo adequado e o único possível, pois nossa linguagem não serve para descrever o mundo olfativo)". Se o diretor Tom Tykwer conseguiu o intento, se foi tão hábil nas imagens quanto foi Suskind ao traduzir aromas em linguagem, aí é uma outra questão.



O ator inglês, Ben Whishaw, que não corresponde às características físicas da personagem do romance, é um colírio para os olhos. Antes assim. Mantém a desumana indiferença de Grenouille em uma pontual interpretação e seu olhar dá todas as coordenadas. Antes ele que Johnny Deep, que roubaria todas as atenções.



Mas vamos ao que interessa. Grenouille é abandonado à morte pela mãe no meio do lixo. Ao invés de amor, ser envolvido pelos braços e abraços maternos, o que ele tem é o mau cheiro e as escamas dos peixes - e essa é sua referência de contato. A mãe, depois de um desmaio, não se lembra que deu à luz. E aí começa a saga de insignificância do protagonista, que o leva a desejar ser amado mais do que qualquer outra coisa. Diz Suskind que Grenouille sobrevive porque diz um não ao amor e um sim à vida.

Mas qual é o desejo que faz com que Grenouille mantenha a vida?

É isso que dorme no fundo da sua vontade de poder, vingar-se da continuada rejeição. Apropriar-se do aroma do amor, vindo do corpo (da alma?) de jovens mulheres. Aquelas poucas pessoas que poderiam inspirar o amor e que todos achavam que era um efeito da aparência. Grenouille sabia que a embriaguez vinha através perfume. Ali estava a beleza, a verdadeira beleza. Mas ele mesmo não tinha nenhuma beleza, assim como era incapaz de sentir amor. Ele não tem cheiro. Não tem em si aquilo que tanto busca. A sua referência de amor, algo vago e etéreo, é o aroma.

No fim da história, quando se questiona sobre o momento em que é tomado de frenesi no encontro com a primeira ruiva, mesmo assim sabe que seu único desejo é arrancar o aroma da moça. Não, não era amor o que ele havia sentido. No entanto, seria a sensação mais próxima ao amor que sentiria em toda sua vida.

O Enamorado está presente no romance in absentia, fluido como um perfume. Perpassa o livro do começo ao fim. Grenouille busca sintetizar o amor em um frasco. E consegue seu intento. Sabe que tem o poder para enganar a todos – reis, papas, imperadores. Mas também sabe que isso é falso, que a verdadeira motivação, a razão do desejo que poderiam sentir por ele, permaneceria sempre em segredo. Que ele jamais seria amado pelo que era. Poderia insuflar o desejo, que tomaria o lugar do verdadeiro amor como num passe de mágica. Um filtro de amor, como em Tristão e Isolda.

Parece-me uma metáfora perfeita para o enamoramento. O outro tem algo indizível, algo que sustém sua imagem num lugar cativo do coração e nada explica diretamente o desejo. Não se sabe dizer se é a voz da pessoa que nos encanta. Se é a cor dos cabelos, o corpo, a inteligência. Se são atributos visíveis ou invisíveis. Resume-se dizendo que é um conjunto, um conjunto daquilo que não é reconhecido em si e que é visto e desejado no outro. Uma projeção de sentidos.

Daí que saber do que se trata o "verdadeiro amor" é função de uma sensibilidade hercúlea e não raro, tarefa inglória. Parece que estamos fadados, como Grenouille, a padecer da flecha de Eros eternamente sem saber direito o que nos toma. Um doce engano, volátil como um perfume.

Mantenho minha opinião. É o Amor, esse nosso desconhecido e que, no entanto, move o mundo, o tema principal da história. Alguém discorda?


Zoe de Camaris

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