23 de maio de 2009

A MORTE FAZENDO FESTA


Pensando na Morte - Frida Kahlo

Sim, sumi. Sumi porque a experiência de desaparecer ainda me é estranha. De repente lá vem ela - fatídica - e ceifa a grama aos seus pés. Vai sumindo com as gentes e é simples assim. Uma sucessão de cortes: Bruxursinha, meu pai, Leon Kaplan, um primo de primeríssimo grau e agora o Zé Rodrix. Todos novos novíssimos. Meu coração parece que virou peneira de bandido. Minha cabeça fica dando voltas. Outra noite, insone, e me peguei na sala, cismando. Acendi um Luck, rodei o dicionário de símbolos num gesto bibliomântico e lá estava: esfinge, máscara, petrificação. Sua face se mostrando na pior penumbra, no mundo do gelado. Arrepio. O momento do calafrio fatal. A Morte.

Nossa.

Falar o quê? É o que todos dizem. Meus Sentimentos. Gosto do lance dos sentimentos porque não entendo bem o peso dos pêsames. Mas mesmo assim, falar deles não significa nada numa hora em que tudo fica sem sentido. É um corte na noção de tempo, do corpo ocupando um espaço. De quantos lugares habitam as almas no ar, no céu.

Um amigo, em rápida menção me disse: - E se somos as ínfimas partículas da água rolando na crista das ondas? Me soou belo, grandioso e patético. Bem resolvido demais. Antes de chegar a gotícula, há que se compreender que Cavalo move a Morte num tabuleiro: Agora, seu nome é Xadrez.

Cena do flme "Det Sjunde Inseglet", de Igmar Bergman


Sempre sonhei com quem se vai desse em mundo em preto e branco. Resta-me as cores no mundo dos vivos e isso não é pouca coisa. Mas eles me parecem pálidos, os que se foram, como num filme antigo. E não é sépia não, é preto e branco mesmo.

Penso que a Morte vem assim num zuuuuuuuum, dá no ouvido da gente crescendo e crescendo - quando se viu já era. Viagem, essa que empreendemos sempre virgens. Mas para isso, há um percalço curioso: Dormimos todos os dias pois, caso assim não fosse, quando a Morte chegasse seríamos surpreendidos em uma porrada incontida, uma explosão de nêutrons, um cruz-credo avassalador.
Convenhamos: há coisa mais estranha, se olhada com perplexidade de quem vê a lua pela primeira vez, do que o ato de dormir?

Vamos lá todos em fila, que nem os anões da branca-de-neve com seus travesseiros, agarrados no quentinho para nos garantirmos. Enquanto estivermos cativos do calor tá tudo bem. Dá pra deitar na cama e ficar ali parado em semi-inércia. Coisa estranha é dormir. Sua normalidade me choca.

Dormimos para nos acostumarmos com a chegada da Implacável. E sonhamos. Nos sonhos, toda uma vida - vias, desvarios, veias em viés. Vida onde transitam aqueles que se foram mas não partiram. Em algum lugar, eles não se partem. Ficam. Deve ser dentro do coração.

Quando aparece alguém que eu não conheço nos meus sonhos, sei que é a figuração de uma alma. Eu poderia até arriscar uma interpretação pseudo psicanalítica, mas não vou perder tempo agora: a Morte não faz Nove Horas.

Então, quando a Inominável, vem - inominável sim, mas com o número bem certo - entramos para sempre no mundo dos sonhos, é a verdade inegável. Somos para sempre o que sonhamos.

Não me assombra a vida após a morte. Sei que ela existe. Mas me apavora seu corpo, sua dureza, sua crua verdade. Seu processo físico grita muito mais nos meus ouvidos do que a poderia a matéria da alma. A alma voa, a alma é leve. O problema é a lama, a Biologia da coisa, sua cara de esqueleto. Mas isso é cá comigo, numa angústia madrugueira que vos confesso e aproveito como mote ilustrativo.

Passar manteiga no pão precisa ser uma experiência sublime, não acham?

Só se pode falar da Morte feita a Ode em Vida.



The Caos Tarot - Arc XIII

Zoe

4 de maio de 2009

ESTADO DE ESPÍRITO


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mais puro que o vôo da corda
mais corda que a vida do vento
mais vento que a asa da lira
mais lírica que a prosa da pétala

mais pétala que a pluma dos dias
mais dias que o desejo do tempo
mais tempo que o acorde de sol
mais sol que a vontade de chuva

mais chuva que a sede de água
mais água que o verde da uva
mais uva que o veludo da veia
mais veia que a calda da lava

mais lava que a terra do fogo
mais fogo que a língua na boca
mais boca que a fome no corpo
mais corpo que a dança do sangue

mais sangue que o ouro da pedra
mais pedra que estátua de seda
mais seda que sonho de mel
mais nuvem que rosas no céu

mais céu que o fundo do azul
mais azul que os olhos de deus



Monica Berger