11 de dezembro de 2014

As Três Espadas da Dor

"Mora na filosofia 
Pra que rimar 
Amor e dor".

Monsueto





















Dor. A dor de amor. A rima é pobre, mas multiplica-se exponencialmente em dobrões de ouro no baú da arte: música, poesia, literatura. Um tesouro de metáforas, sons e tintas. Dá ibope porque todo mundo já sentiu, sente ou sentirá um dia (e por longas noites, noites que parecem não ter fim) o coração trespassado pelas Três Espadas. “Do meu coração ela fez almofada furadinha de alfinetes”, acerta na mosca Dalton Trevisan.

Eu não queria falar sobre o assunto porque recordar é viver, mas a enxurrada de consulentes nos últimos meses com a mesma questão (de sempre) vinha me encasquetando. Quando isso acontece acabo achando que preciso me deparar com o assunto de forma mais profunda. Mas não estava nem um pouco a fim, juro pra vocês. Medo de escutar todas aquelas musicas bregas de novo; depois, todas aquelas outras lindas de morrer. Então deixei quieto até que vi uma imagem que não conhecia do arcano menor. E lembrei do coração que, um dia, desenhei em uma árvore. Tarde demais, já havia acionado a máquina do tempo. E um filme pulou do arquivo.





















Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Para se livrar das memórias amorosas, uma máquina que tudo apaga. Fantasia constante na dor de cotovelo. Você quer esquecer imediatamente, uma piscadela de Jeannie, uma fórmula mágica para recomeçar a viver, chega de sofrimento. Mas não adianta. A engenhoca não existe. E depois, a questão pode ser bem mais complicada do que parece: apaixonar-se pela Tristeza. Manter a dor é manter alguma coisa da história que se foi. E o que mais dói são as boas lembranças. 

Hajo Banzhaf, ao interpretar o 3 de espadas frisa que essa imagem, comumente vista como uma tradução da dor emocional causada por sofrimento amoroso, ofusca o significado principal do arcano menor: a decisão tomada contra este sentimento. Aceito que toda carta traga em si sua solução, vamos explorá-la. Concordo também que é impossível fazer uma leitura de Tarot sem que se tenha em mente que o significado de uma carta é modulado por aquelas que a rodeiam, já que o Tarot é uma linguagem. O 3 de espadas em alguns contextos pode significar apenas alguma tristeza passageira ou uma dor antiga que ficou encalacrada.

No entanto, o impacto da imagem é revelador. Não há quem não identifique o coração trespassado como uma tradução vívida da dor emocional. Quem nunca desenhou um um coração ferido por uma flecha? Cupido sacana, garoto irresponsável. E quando da flechada se esvaiem gotas, uma poça de sangue? E precisava flechar três vezes?





















A Espada Branca do Abandono

O coração foi atingido por um vazio devastador. Um deserto de areias claras que nasce de uma nódoa, uma mágoa profunda. Poderia ser negra a espada? Sim, negra como Saturno, todos os nossos filhos devorados, um buraco. Estamos na fossa, negra pela ausência de cor. Mas branca como os cabelos brancos, branca como um tremendíssimo Nada. Nada que até desejaríamos escuro, pois aí então seria a Morte. É pela morte que clamamos quando começa a crise de abstinência, a angústia do aniquilamento. Mas o problema no auge da dor é que não estamos mortos. Pelo contrário. Acordamos e dormimos com a ausência. E a vida fica em branco, desintegrada. Desalento, abandono. A criança que perdeu a mãe. E o único colo possível se levantou apressado. Vulneráveis, estamos sozinhos e desabrigados no frio, na chuva. E sentimos Medo.

A Espada Branca do Abandono é a espada crucial, acerta no meio do coração. Vai ditar o tempo real em que permaneceremos na fossa. Tudo depende da sua autoestima. Da sua capacidade de nutrição. Do valor que tem perante a si e, mesmo que seja difícil admitir, perante aos outros. Do apoio que recebe. Do carinho amoroso que pode embalá-lo agora. A ternura salva. Mas não se esqueça que a Dor, assim como a Alegria, faz parte do caminho. Encare a dor da perda, viva o luto por tempo determinado. Combater a dor imediatamente  com remédios não é a saída. 

A carta que ressignifica a Espada do Abandono é o 3 de copas. O que não cabe na cabeça, o que a cabeça rejeita, pode caber perfeitamente no coração. As águas quentes de Copas podem derreter o gelo de Espadas, o frio egoísta do amante rejeitado. E o deserto transforma-se em um espaço de liberdade. 


A Espada Vermelha da Raiva

"Talvez as lágrimas não sejam mais do que isso, o alívio de uma ofensa", diz José Saramago. A tristeza confunde-se facilmente com a raiva. Para não chorar, gritamos, lançamos impropérios às estrelas. É o espaço da birra. Do ciúme, da vingança, os planos que arquitetamos para que aquele (a) que nos fez sofrer arda no inferno do merecimento. As armações, inevitavelmente prejudicadas por uma chama que coloca toda estratégia a perder. Não se pensa bem quando baixa o pano vermelho. Única cor quente entre as Espadas da Dor e também a mais perigosa. Um sopro de vida nos coloca em pé de guerra. O estado passivo dá lugar à ação. A raiva toma o lugar do tesão e da alegria. A agressividade como impulso vital em meio ao gelo do abandono. A Espada dos Inconformados. E dos assassinos. Gotas de sangue sobre a neve. Me disse uma vez um amigo sobre a raiva: "Você fica com o original e manda a cópia". Ou seja, a primeira vítima do veneno destilado é você mesmo. 

A Espada Vermelha da Raiva mostra que a energia existe. Está ao seu dispor. E que você pode transmutá-la em ânimo. Que depois de esmurrar travesseiros, dar um pique (vários) de bike e tomar um (diversos) banhos ultra especiais, aquele vestido ainda está no armário e os batons vermelhos, no prazo de validade. Só não caia na velha armadilha de tomar um porre. Assim, a volta da Espada Branca será inevitável. 

A carta que ressignifica a Espada da Raiva é o 3 de Bastões, A Virtude. Ultrapasse os limites que o mantém preso em espaços torturantes. Desmonte a área de conforto desconfortável. Transmute o fogo da Espada Vermelha explorando o desconhecido. O mundo está aí, em suas mãos. 


A Espada Azul da Saudade

O passado se mistura ao fluxo do presente e se lança no futuro. Nenhuma outra espada tem o poder de acionar a máquina do tempo como a espada azul. Na bruma blues da palavra, paira o monstro da esperança e da alienação. O retorno do ser amado, a volta ao paraíso, os planos traçados para quando ele perceber que sem você a vida não tem graça. A Espada Azul da Saudade pode apagar a ideia de abandono e também da raiva situado-se em um ideal que obinubila a realidade, agora azul-clara como os olhos de um cego. Cria-se um mundo de fantasia em que podemos habitar na hora em que nos der na telha. É espada que não se tira da pedra. A única que vingará para um amor vivido em techinicolor. Temos total liberdade para sonhar. Como a Hidra de Lerna e sua cabeça imortal! Lembram que Hércules destrói todas as cabeças da Hidra menos uma? Aquela que mesmo enterrada pode voltar à vida a qualquer minuto? Manhosa, esse espada.

A Espada Azul da Saudade exige que depois da choradeira, depois de escutar a mesma música por três (ou mais) dias inteiros, depois de lembrar do corpo dele (a) em seus menores detalhes com uma disciplina que faria inveja a um monge, a recorrência ao mesmo motivo seja lentamente deslizada para o trabalho. Cabeça vazia (cheia de lembranças) é a Oficina do Diabo. "Um passarinho/ volta para a árvore/ que não mais existe// meu pensamento voa até você/ só para ficar triste". Poema belíssimo que nos faz visualizar a imagem da saudade, de Alice Ruiz. Mas agora deu. Faça com que o passarinho pouse na árvore que está aí fora da sua casa, aquela árvore que você consegue ver. Se não isso não vai acabar nunca!

A carta que ressignifica a Espada da Saudade é o 3 de Pentáculos, o Trabalho. Reuna suas forças (mente, corpo e espírito em uma só direção) e lance-se em um projeto. Tome atitudes concretas para diminuir o tempo do devaneio.





















Nada deu certo?  Não é bolinho mesmo, ninguém disse que ia ser fácil (a decepção amorosa é o reino dos clichês). Mas eu ainda tenho algumas cartas na manga. Essa foi a que funcionou comigo. Vamos lá:

Imagine um monstrinho negro e peludo. Gordinho, redondo. Ele paira à esquerda da sua cabeça, um pouco mais para o alto. Ele se alimenta da sua autocomiseração, da sua raiva, dos seus pensamentos saudosos. Vamos emagrecer o bichinho. Mas antes o visualize (aqueles livros de imaginação ativa que você leu escondido de seus amigos intelectuais precisam servir para alguma coisa).

(...)

Pronto? Visualizou? Pois bem. Você poderia matá-lo com uma espada astral, mas iria dar um trabalho tão monstruoso quanto o próprio monstro. Então vamos pelo caminho mais simples, mas não menos efetivo. A inanição da forma-pensamento sangue-suga. Pare de alimentá-lo lentamente, com requintes de crueldade.  Quando ele estiver morrendo de fome vai ficar louco, sedento. Os pensamentos dos quais quer se livrar vão voltar com tudo e você vai dizer que essa tal de Zoe de Camaris está de estória. Calma, esse é o momento mais difícil. Mantenha a imagem. Veja o monstro peludo diminuindo de tamanho. Do negro vibrante azulado, ao cinza empalidecido. Não, não corra escutar Alone Again de novo, por favor. Você vai conseguir. 





















Talvez a alma de borboleta azul do bicho peludo nunca suma por completo. Mas a pior parte já passou. Você está livre para respirar, para trocar os espelhos de casa, os seus olhos voltarão a brilhar. Uma casca de cebola retirada é retirada para sempre. Você já deu vários passos. A projeção, o risco da dor, a beleza de amar estarão aí nessa vida de idiossincrasias sempre, ao alcance de sua mão. Porque é o que nos resta depois dessa experiência maravilhosamente horrível, não é? Crescer. 

Eu não inventei a magia do monstrinho. Está em um livro de magia prática que tem o Tarot como mote. Apenas a adaptei sem alterar a essência. Enquanto escrevia esse artigo, contei para minha irmã como funcionava. Ela gostou, mas disse ter uma bem melhor e de própria autoria. Vou colocá-la aqui porque no fundo ainda acho que só o Tempo, esse senhor que deve ser respeitado, é que dá jeito na dor de amor. E se você já tentou tudo, sais de banho, academia, psicanálise, meditações ativas; já rasgou as fotos, já roeu todas as unhas, encantamentos para cortar os fios, vale a marmelada antes da morte. Agora, só para mulheres:

Coloque uma roupa de príncipe encantado no seu príncipe. Meias rosadas, sapatos que viram na ponta com fivelas douradas, calçonetes bufantes, blusa idem (com algumas listras), pluma escandalosa no chapéu medieval. Imagine ele com um corte chanel, com as pontas dos cabelos escapando pelas orelhas. Escolha então um apelido "daqueles". Apelido que deve ser mantido em segredo e só usado em petit comite

E agora, por favor, ria um pouco!



Zoe de Camaris

P.S.: Agradeço ao amigo Marcelo Bueno, tarólogo de fino trato, por ter me acompanhado em aspectos teóricos e práticos enquanto formulava esse artigo.